Assim no Céu como na Terra …
por Paulo Morais-Alexandre
«…
Nunca ninguém pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.»
Alberto Caeiro
Talvez um dos mais belos textos alguma vez escritos em língua portuguesa seja o poema VII do Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro e será este poema que nos guiará e permitirá compreender o desiderato, enquanto pintora, de Isabel Botelho.
Um dos aspectos mais interessantes a referir sobre a presente mostra é a clara evolução da autora relativamente à obra anteriormente realizada. O que ora é mostrado é claramente uma encruzilhada de um longo, embora não tortuoso, percurso plástico. Está-se perante uma pintura do concreto e de um concreto muito próximo, visto, na maior parte das vezes, da sua janela.
Isabel Botelho jamais se desvia do naturalismo. Começa por mostrar as coisas tal como elas são na realidade, a grandiosa composição da barra do Tejo, os navios que procuram o porto de Lisboa, a belíssima ponte sobre o rio. A pintora tenta observar e sobretudo mostrar os objectos do nosso quotidiano através de um novo olhar, de uma perspectiva diferente, por vezes quase insólita como sucede no caso das árvores gémeas, que se organizam no espaço de uma forma muito pouco usual. Jamais cai no piegas ou no postal ilustrado, graças a um enorme sentido de depuração só permitido por uma mestria técnica notável. Há uma clara transição entre algumas das obras, a depuração vai-se sentindo cada vez mais, algumas telas reduzem-se quase a uma muito ténue linha de horizonte, limitam-se a um riquíssimo “quase nada”, explora-se a luz e a sombra, a noite e o dia. Mas não fica por aí, como que utilizando uma potente lente macro de uma câmara fotográfica imaginária, faz aproximações ao objecto do seu interesse até chegar quase a formas difusas, só entendidas pelos mais atentos. Veja-se a este respeito a obra que encerra a mostra com chave de ouro, “Sombras de Verão”, que mais não representa que sombras projectadas na poeira do caminho, num caminho feito de Céu, mas ancorado na Terra.
Apenas aspirando a transmitir o privilégio que tem em poder, da tribuna que é o seu ateliê, desfrutar de uma das mais belas paisagens: – a entrada da barra do Tejo, onde as águas do rio se fundem com o oceano Atlântico – a pintora não pretende transmitir pesadas reflexões, ou elucubrações metafísicas. Será também abusivo falar de um voyeurismo, algo que de uma forma nobre caracterizava a obra desse extraordinário Vermeer de Delft. Falar-se-á antes de um júbilo perante o espectáculo fantástico da Natureza vivida e transformada pela Humanidade.
Aliás, numa postura muito semelhante à do mestre de todos os heterónimos pessoanos, Isabel Botelho faz dela as palavras anteriormente citadas do poeta, relativas ao rio que corre pela sua aldeia que neste caso é o próprio Tejo: «Quem está ao pé dele está só ao pé dele.» e transmite-nos a situação de plenitude que sente. E é aqui que entra a ambição de Isabel Botelho: nenhuma obra de arte pode viver sem ser apreciada. Assim, estas pinturas obrigam-nos a participar. Somos nós que as vamos fruir, que vamos fazer as nossas escolhas, que vamos optar por não pensar em nada, premissa pérfida que assenta numa propositada e nada inocente dupla negativa, ou se, pelo contrário, as vamos carregar com as nossas vivências, com as nossas memórias, individuais ou colectivas, e lhes vamos dar um significado outro, só nosso. E, é aqui que reside a grande qualidade desta mostra, o facto de ter um significado perfeitamente distinto para cada pessoa que a visita, ou melhor: que a sente..